Resgatar a criança em nós para dialogar com a criança diante de nós

“A criança pequena, graças a Deus, está começando a ser vista neste país. Nem sempre como a gente gostaria, no lugar que a gente gostaria, mas a gente sente que está saindo de uma invisibilidade total”. A fala é de Maria Thereza Marcilio, gestora institucional da Avante, ao dar como aberta a palestra – O que querem as crianças de hoje? E, nós, adultos, o que queremos de uma criança? Organizada pela Avante – Educação e Mobilização Social na última segunda feira, 17 de fevereiro, o evento contou com a presença de representantes de escolas da rede pública e particular de ensino de Salvador, e assessoras pedagógicas, supervisoras e gerentes da Educação Infantil das Redes Municipais de ensino de cinco municípios do nordeste parceiras do projeto Paralapracá, que marcaram presença para ouvir a doutora em Educação pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) e especialista no brincar – Tânia Fortuna.

Antes de passar a palavra para Tânia Fortuna, Maria Thereza falou ainda de como o brincar – uma linguagem tão importante na infância – perdeu a sua relevância no cotidiano das crianças e na sua relação com os adultos. “O brincar, no mundo atual, passou a ser uma atividade a ser realizada quando uma atividade ‘séria’ não está em fluxo”. Ao se despedir, Thereza lembrou a importância de se resgatar este brincar, os espaços do brincar nas casas, nas ruas para que se recupere a cidadania das crianças e assim colaborar com a redução da violência ao possibilitar a presença acolhedora da infância nos espaços públicos.

Ao receber o bastão da fala das mãos de Maria Thereza, Tânia Fortuna iniciou a palestra com a seguinte interrogação: Como são as crianças de hoje em dia? Por que elas nos parecem tão diferentes das crianças de antigamente? “Quando pensamos o que é uma criança, nós perguntamos também o que quer uma criança. (…) A infância é uma coisa que muda, a infância não foi sempre assim. A tendência é que a gente se reporte a nossa própria infância tomando-a como referência de como achamos que deve ser a infância das nossas crianças. Então, o que nós queremos das crianças?”.

Tânia falou sobre infanticídio – uma morte em larga escala da infância provocada por situações de risco e violência, mas também por situações do cotidiano causadas por interações que vão aniquilando a infância dentro de cada criança. Mas também falou do infantocentrismo – este lugar central e privilegiado em que as crianças são colocadas hoje em dia e que as expõe a situações de stress por solicitar delas escolhas e posturas para as quais não estão preparadas. E alertou para o cuidado com a tendência dos adultos de hoje de permanecer num movimento pendular entre um extremo e outro.

A palestrante apresentou diversas pesquisas, feitas com crianças do ensino público e privado, sobre o que elas desejam. Em ambos os casos vieram à frente dos brinquedos e da tradicional bicicleta, os jogos eletrônicos e coisas como carro e TV de plasma. Ao serem questionadas nas pesquisas em questão sobre o que as fazem escolher um produto elas responderam, em primeiro lugar, por ser bonito, e em segundo, por indicação dos pais. Dados exibido nesta noite de segunda feira apontam que, na opinião das crianças, o evento mais traumático de sua vida é a perda de um dos pais por morte ou separação. Que elas querem estar com eles, interagir.

A brincante eterna, então, exibiu um filme que mostra uma experiência que evolveu a observação da interação entre pais e bebês. E provoca reações chamar a atenção de como a não interação dos pais com os bebês pode causar ansiedade nos pequenos e como a situação contrária pode lhes trazer alívio e prazer. E perguntar, mais uma vez: o que quer uma criança? “Continua sendo importante para as crianças, em meio a tantas mutações, a presença de um adulto que possa exercer as funções parentais”, sentencia. Tânia demonstra que as crianças de hoje, como as de ontem e provavelmente as de amanhã querem sentir os pais juntos “dentro de si”. Que elas querem ser escutadas. “A escuta da criança é uma coisa muito especial. Não basta ter orelhas. Então, como ouvir uma criança?”.

A resposta foi ao encontro harmonioso com a abertura da palestra realizada pela gestora da Avante: o brincar. “A partir da mediação do brincar. Se quisermos ser educadores precisamos nos reconciliar com a criança que fomos para que a criança que existe dentro de nós possa conversar com a criança que está ali, diante de nós”, disse Tânia a uma plateia atenta.

Enfática, Tânia reforçou: “Desistam, vocês não vão compreender a criança atrás de um vidro ou por trás de um livro. É preciso estabelecer uma interação com a criança. É preciso resgatar a criança dentro de nós para dialogar com elas”. O que não significa, esclarece ela, ser criança de novo, apelar para a fala infantilizada, mas estar em contato com esta fase da vida que, como tantas outras, vive dentro de cada um. Se permitir.

As crianças de hoje trazem desafios aos adultos de hoje porque elas fazem parte de um tempo em que as mudanças são rápidas e constantes. E mostra que ela se reinventa juntamente com as possibilidades que lhe são oferecidas.  Segundo ela, a criança de hoje possui um raciocínio pós-linear; o desejo pela troca entre pares, mesmo que seja mediado pelas tecnologias; uma atenção difusa; e algo não tão novo assim – a atração pela novidade, o desafio e o risco.

“E o que será de nós?”, ela pergunta, para responder em seguida: “Nós estamos mudando também. Vamos entender esta criança que está se reinventando”. A que está dentro ou diante de nós? Talvez ambas.

Tânia é doutora em Educação pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), Tânia Fortuna é professora de Psicologia na mesma instituição, onde também fundou o programa de extensão universitária “Quem quer brincar?”. A pesquisadora possui diversos textos sobre brincadeira, ludicidade e educação, tendo proferido palestras e cursos no Brasil e exterior sobre o assunto.

O evento foi organizado pela Avante – Educação e Mobilização Social – uma organização da sociedade civil que, por meio da promoção de ações e eventos formativos e de mobilização social, busca colaborar para a construção de uma cidadania ativa.

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